Sei que o assunto é por demais comprido, mas devido a tantas perguntas sobre ceticismo, resolvi colar aqui no blog um breve estudo sobre o tema. É o que segue:
''Temos assistido nos últimos anos ao crescimento de proposições extremistas em quase todos os setores da atividade humana. Na Ufologia, marcadamente, pelo seu próprio caráter multifacetado, interdisciplinar e indefinido, isso vem se multiplicando cada vez mais. De um lado, os crentes que em tudo acreditam sem nada questionar, de outro, os céticos que em nada acreditam e tudo criticam e questionam.
O embate radicalizou-se sobremaneira em grande parte devido a estes últimos que, sem poupar ataques e empregando o máximo de suas energias, propõem a desconstrução e até a extinção do fazer e pensar ufológico. Como venho dedicando-me ao estudo da historicidade ufológica e sua dimensão no campo das ciências sociais, pretendo neste ensaio entabular uma análise crítica da postura cética.
Tal empreendimento justifica-se, primeiro, porque os ufólogos têm sido sistematicamente detratados sem que houvesse uma contrapartida que atingisse o fulcro das práticas discursivas dos céticos. Cabe dizer ainda que a presente desconstrução discursiva será operada por meio da crítica filosófica, assentada na perspectiva dialética. Sem querer ferir suscetibilidades, longe disso, devemos reconhecer, com justiça, que na fileira dos céticos há uma nova geração de intelectuais brilhantes, familiarizados com a rigorosidade e a vanguarda do pensamento científico e que faz uso pertinente de suas teorias e métodos para chegarem aos resultados objetivados.
Entendo que os pressupostos capitaneados pelos céticos são de grande serventia para o avanço da própria Ufologia, à medida que obrigam os ufólogos a sobrelevarem-se a um nível congruente, porém, discordo inteiramente dos limites absolutos e dos preconceitos que pretendem impor. Para eles, as coisas existem ou não existem, se bem que a melhor filosofia é não acreditar em nada.
Dogmas e preconceitos
A ciência é que se encarregaria de mostrar toda a verdade. Assim, a postura que adotam é deveras cômoda: crêem e aceitam como verdade apenas aquilo que foi efetivamente comprovado e homologado pela ciência oficial, desprezando tudo aquilo que vai contra o "credo" científico, pois, assim, podem falar em voz alta sem medo de serem vistos como "crédulos" e "ingênuos". Seguem ao pé da letra o que foi enunciado pelo filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970) em seu livro Sceptical Essays [1928]: "Não é aconselhável acreditar em uma proposição enquanto não há qualquer motivo para supô-la verdadeira".
Trata-se, sem dúvida, de um comportamento restrito que não pode ser generalizado a todo o conjunto dos céticos, subdivididos, como em qualquer outro setor, em correntes mais ou menos ortodoxas. Não obstante, é típico de uma significativa parcela da comunidade cética, sintomaticamente composta, em sua maioria, por indivíduos com formação educacional elevada, muitos deles seguindo carreiras acadêmicas de prestígio em renomadas instituições universitárias.
No fundo, acreditam desacreditando, ou seja, querendo que se comprove cientificamente, pois, assim, as questões da crença poderão deixar de ter necessidade de fé. Bastaria, assim, a comprovação científica. O ceticismo é definido como o sistema que, negando a legitimidade dos meios de adquirir a certeza, nega a existência da mesma e considera a dúvida como o resultado definitivo da ciência, e como o estado normal do espírito humano. Suas atitudes filosóficas se pautam pelo recurso exclusivo à noção de matéria para explicar a totalidade dos fenômenos do mundo físico e do social.
O ceticismo nasceu entre os gregos, no século VI a.C. – daí o termo skeptikós [Céticos] –, e foi retomando nos séculos XVI e XVII com o advento do racionalismo e iluminismo. Sustentando que nada é certo e que, por conseguinte, se deve duvidar de tudo, o cético nega assim as verdades da fé, o valor do testemunho e a metafísica, pregando que toda pesquisa das coisas é estéril e que a ciência deve limitar-se aos fatos e às leis. Para eles, tudo o que não for condizente com a ciência material não passa de uma construção social e ideológica.
A grande questão que nos interessa não é o quanto podem estar certos, ou não, neste ou naquele caso, ainda que seja preciso admitir que muitas vezes de fato estão, mas a relação que fazem com aquilo que conhecem de ciência, ou mesmo as informações "científicas" que lhes chegam. A declaração de princípios dos céticos remete inequivocamente a um racionalismo cientificista, a uma vertente central ortodoxa que preservou os elementos ideológicos do ideário positivista, herdados de suas fases anteriores e que foi dominante durante certo tempo nos meios acadêmicos, mas que hoje está completamente superada.
"Duvidar de tudo ou crer em tudo são duas soluções igualmente cômodas, que nos dispensam, ambas, de refletir" -- Henri Poincaré (1854-1912)
Sob o influxo do racionalismo, em geral, e do positivismo, em particular, o cientificismo foi tardiamente adotado pelos céticos como modelo epistemológico [Relativo à teoria do conhecimento] cientificamente legítimo e válido de explicação dos fenômenos ufológicos e paranormais, desempenhando um papel semelhante à ilustração na Europa nos séculos XVII e XVIII, ao oferecer um saber secular e temporal, afastado das concepções religiosas.
A adoção do cientificismo por eles está associada à expectativa – malograda ou frustrada – de que a ciência fundaria um tipo de autoridade mais racional e civilizada. Cientificismo é uma posição filosófica, e não científica, que considera válido somente o conhecimento científico. A ciência se converte no mito da modernidade, substituindo o impulso pessoal, a paixão e o ímpeto revolucionário. O avanço científico europeu do final do século XVIII, decorrente da Primeira Revolução Industrial, fez com que o homem acreditasse que detinha o domínio total da natureza.
Teorias cientificistas
Os últimos anos do século XIX e os primeiros do XX foram marcados pela difusão de diversas teorias cientificistas que, apregoando o predomínio da ciência e do método empírico sobre os devaneios metafísicos da religião, deixaram marcas profundas no estudo da natureza, com o evolucionismo de Charles Darwin (1809-1882), e da sociedade, com o positivismo de Auguste Comte (1798-1857) e o darwinismo social de Herbert Spencer (1820-1903). Além disso, aprimoraram teorias no direito e na psiquiatria, com a antropologia criminal de Cesare Lombroso (1835-1909) e Enrico Ferri (1856-1929), e mesmo na religião, com o espiritismo de Allan Kardec (1804-1869).
Tais correntes procuraram romper com as assunções abstratas e metafísicas. Compartilhavam a convicção de que a ciência e a técnica resolveriam os problemas básicos da humanidade e proporcionariam a felicidade geral. O positivismo foi uma grande moda intelectual de sua época, ao qual todas as teorias que se pretendessem científicas – leia-se "verdadeiras" ou "corretas" –, deveriam ajustar-se.
As raízes do positivismo são atribuídas ao empirismo absoluto do filósofo iluminista escocês David Hume (1711-1776), que concebia apenas a experiência como matéria do conhecimento. Em sentido estrito, o termo designa o conjunto das doutrinas do filósofo e matemático francês Isidore Auguste Marie François Xavier Comte, ou simplesmente Auguste Comte, cujo princípio essencial é: só podemos conhecer os fenômenos positivos – reais – da experiência e as suas leis, isto é, eles seriam os únicos objetivos de investigação do conhecimento.
O erro infantil e a impropriedade de perceberem tal assimilação tardia atestam um caso sintomático de "idéia fora do lugar", ou de "porre ideológico". Mas é preciso fazer algumas distinções, se quisermos realmente compreender a atitude dos céticos, sem incorrer nos mesmos slogans cientificistas que a gente "esclarecida" tanto gosta de repetir.
Ao se assumirem e se comunicarem por meio de um discurso pautado nos paradigmas positivistas, os céticos acabaram por ressuscitar, involuntariamente ou não, a teoria fundamental da doutrina, a chamada Lei dos Três Estados, segundo a qual a evolução da humanidade está necessariamente pautada por três estados sucessivos: o teológico – subdividido em fetichismo, politeísmo e monoteísmo –, no qual os fenômenos da natureza e os problemas do homem são explicados por causas sobrenaturais.
Equívoco primário dos céticos
O metafísico ou abstrato, em que essas causas sobrenaturais são substituídas por entidades metafísicas e o positivismo ou científico, no qual o espírito humano renuncia a conhecer a essência dos seres, e se propõe unicamente a estabelecer relações invariáveis de sucessão e similitude entre os fenômenos. Com essa atitude, os céticos, ingenuamente, incorrem no equívoco primário de considerarem o pensamento mágico, ou tudo aquilo que não for racional e científico, como resquício de um passado a ser apagado e esquecido, ou uma maneira equivocada de pensar a realidade.
Quando as crenças mágicas ou religiosas insistem em se fazer presentes, costumam dizer que subsistem apenas porque a ciência ainda não se deu conta de explicá-las devidamente ou porque as pessoas que as cultivam são simplórias, atrasadas e supersticiosas. Entretanto, não é isso o que os antropólogos, sociólogos, historiadores e psicólogos têm verificado desde o início do século XX.
O fato é que, conforme qualquer pessoa pode constatar – e é estupefaciente que os céticos, geralmente tão bem informados, não tenham constatado isso –, que a ciência convive e mescla-se com as crenças religiosas e que formas diferenciadas de pensar convivem simultaneamente.
"Há duas classes de tolos: os que não duvidam de nada e os que duvidam de tudo" -- Sabedoria Popular
O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), em seu clássico livro Les Formes Élémentaires de la Vie Religieuse [As Formas Elementares de Vida Religiosa, Editora Paulus, 2001], publicado em 1912, assinalou que tanto a lógica do pensamento religioso quanto a do pensamento científico são constituídas dos mesmos elementos essenciais: "Sob esse aspecto, a mentalidade do cientista só difere em graus da precedente. Quando uma lei científica conta com a autoridade de experiências numerosas e variadas, é contrário a todo método renunciar facilmente a ela com a descoberta de um fato que parece contradizê-la. Antes é preciso estar seguro de que esse fato comporta apenas uma única interpretação e de que não é possível negar".
Para ele, o primitivo é então motivado a não duvidar do seu rito diante da prova de fato contrário, sobretudo, porque o seu valor está ou parece estabelecido por número mais considerável de fatos concordantes. Não é por acaso, portanto, que a ciência encontra-se repleta de elementos religiosos. É que, como demonstrou Durkheim, ela nasceu da religião, assim como quase todas as instituições sociais.
Pretensa superioridade da ciência
Atestou também que até as noções essenciais da lógica científica são de origem religiosa. "Certamente, a ciência, para utilizá-las, submete-se a nova elaboração, mas esses aperfeiçoamentos metodológicos não bastam para diferenciá-la da religião. Entretanto, ela tende a substituir a religião em tudo o que diz respeito às funções cognitivas e intelectuais".
Todavia, ao pretender isso, estabelece um conflito contraditório, pois não pode negar algo que existe e é uma realidade. A ciência não teria competência especial para atribuir a si o conhecimento do homem e o mundo, já que sequer conhece a si própria. "Ela própria é objeto de ciência e está longe de poder impor. Permanece sempre a distância da ação. É fragmentária, incompleta. Avança muito lentamente e jamais está concluída, mas a vida não pode esperar. Teorias que se destinam a fazer viver, a fazer agir, são obrigadas a passar à frente da ciência completando-a prematuramente".
Discípulo de Durkheim, o filósofo e sociólogo francês Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939) dedicou grande parte de sua vida ao estudo das sociedades ditas primitivas. Em sua obra La Mentalité Primitive [1922], define a mentalidade primitiva como sendo pré-lógica, sem que se refira às inabilidades para o raciocínio, e sim às categorias em que o mesmo se processa.
O humano moderno não é o primitivo, mas tampouco possui os valores, conceitos, axiomas e sentimentos idealizados pelo cientificismo positivista dos céticos. E como os primitivos, tende a ser místico ao situar-se para além da verificação possível da experiência empírica e ser indiferente às contradições. Na mentalidade mística, tudo pode acontecer a partir de forças não visíveis. As ligações de causa e efeito são até percebidos, mas o significado principal é atribuído às causas naquele determinado momento em que são socialmente relevantes.
Tão certo quanto o raciocínio lógico e a própria capacidade de inferir logicamente as conseqüências de tais ou quais situações não serem exclusivas do pensamento científico, este não constitui garantia de cientificidade, muito menos de verdade. A ausência do real, diferença entre a ciência desenvolvida segundo os moldes adotados desde o século XVI e as pajelanças dos selvagens, foi cabal e magistralmente demonstrada pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), que eliminou a distinção feita entre mentalidade lógica e pré-lógica, para afirmar a superioridade de uma cultura sobre outra e revalorizou sobremaneira os mitos, a religião e as artes.
Nascido na Bélgica em 1908, membro da Academia Francesa e ex-professor de antropologia social no Collège de France e na então nascente Universidade de São Paulo (USP), Lévi-Strauss argüiu que o pensamento "selvagem" e o mitológico obedecem ao mesmo inconsciente coletivo que o científico, uma vez que se nutrem da mesma lógica. Entre 1935 e 1949, realizou várias expedições pelo Brasil e conviveu com diversas tribos indígenas, especialmente com os nambikwaras – próximo das nascentes do Rio Tapajós, no Brasil Central.
Isso fez com que ele soubesse observar e reconhecer, exemplarmente, que a cultura não era privilégio da Europa e naquilo que erroneamente se convencionou considerar como estágio infantil da humanidade, reside toda uma gama de conhecimentos complexos e profundos, derrubando o mito racista de que os primitivos seriam incapazes de estabelecer visões de mundo coerentes – sistemas lógicos –, e se comunicariam a partir de referenciais puramente afetivos.''
Marlon Santos
Parte dessa pesquisa se deu na Revista de Ufologia